O presente texto discute a relação entre cultura e política, buscando-se uma instrumentalização na política externa. Neste, explora-se através de figuras como Beethoven, Emicida, Nietzsche e o Samba, como uma cultura emancipada, pode ser uma ferramenta de emancipação política. Analisa-se como manifestações culturais carregam identidades, visões de mundo. A arte, em sua verdadeira essência, é aquela que emancipa o ser. A emancipação, neste sentido, traduz-se como libertar-se de algo ou alguém. O pensar consciente é a base de uma sociedade democrática de bem estar social, em que propicia-se a liberdade. Para além da concepção em democracias liberais em que se definem apenas pelos direitos civis, numa democracia de bem estar social real, há garantias de direitos culturais e racionais. A democracia propicia uma cultura da cidadania (CHAUI, 2013). Se o ser humano, como Aristóteles retrata, é um ser político, a arte também pode ser considerada intrínseca ao ser, e é nisto, que esta tese fundamenta-se.
INTRODUÇÃO
A construção da sociedade se dá por meio de relacionamentos, construindo assim, identificações. A cultura, neste sentido, traduz-se como o conjunto dessas relações e manifestações exclusivas, mas que muitas das vezes podem caracterizar linguagens comuns. Culturas podem originar hierarquias e relações de poder. Podem fortalecer individualidades, de modo crítico, ou adquirir um pensamento generalista de modo a perpetuar dominâncias. Seu resultado muitas vezes dependerá do processo como ela se manifesta. Uma cultura, mesmo que construída historicamente com base em opressão e hierarquias, não significa necessariamente que ela perpetue essa característica por tempo indefinido , pelo contrário, é com o reconhecimento histórico e identitário que uma mudança faz-se presente. Deste modo, a história é o entendimento base para compreender a construção da cultura e identidades.
O que vem primeiro: a política ou a cultura? A política nada mais é do que a manifestação institucional de uma cultura. Com a criação de Estados Modernos, ambas se retroalimentam tornando-se uma a premissa da outra. Em materializações claras, o que entendemos como identidade nacional, por exemplo, é a cultura institucionalizada pela política a fim de consolidar um Estado. Sem reconhecimento popular, identificações, sociedades não são construídas e por fim, um Estado também não. Portanto, torna-se primordial sua estatização. No entanto, se, como visto anteriormente, relações hierarquizadas são materializadas frequentemente em uma cultura, a política também pode traduzir esse processo. Neste sentido, a emancipação cultural traduz-se como a identificação consciente de si, por meio de uma cultura. É a noção de reconhecimento coletivo, e por fim, empoderamento a si. A emancipação política, neste contexto, se dá pelo exercício da emancipação cultural. A relação de hierarquização não é feita unicamente pelo dominador, e sim o sujeito por si mesmo pode reproduzir uma identidade acrítica sobre si. Assim, se a cultura carrega em si as marcas históricas de suas opressões e a política institucionaliza os anseios e limites de uma sociedade, pode a arte, enquanto manifestação cultural, efetivamente romper com essas estruturas de poder e conduzir à emancipação, ou estaria ela fadada a reproduzir as mesmas dinâmicas de dominação que busca contestar?
PARTE 1:
Em 1804, o mundo contemplava a Sinfonia n. 3, intitulada "Heróica" por Ludwig van Beethoven. A obra marca um período de transição do neoclassicismo para o romantismo. Para além de suas grandiosas especificidades musicais, a composição de Beethoven possui uma interessante identidade, pois seria dedicada a Napoleão Bonaparte, no contexto de Revolução Francesa e preocupação por parte das monarquias europeias com a perpetuação de seu poder. Beethoven era um grande admirador dos ideais revolucionários e da figura de Bonaparte como líder. No entanto, após a auto-proclamação de Napoleão como imperador, o compositor se revoltou e pegou a página-título da obra, riscando o nome Bonaparte com tanta raiva que rasgou-se o papel. Após sua decepção, mudou o nome para “Sinfonia Heroica”, composta para celebrar “a memória de um grande homem.”
Ainda assim, diversas obras, principalmente a “Heroica” são cheias de referências à revolução. O The Relentless Revolutionary (2019), crê que os famosos dois primeiros acordes, que soam como tiros de canhão, representam os canhões disparados pelos exércitos de Napoleão marchando pela Europa. “Os acordes lembram o mundo da Revolução francesa: exuberante, exagerada, colossal. Eles são chamados para despertar um público sonolento, em Viena, da repressão e censura pelo Império Austriaco, e em todo o mundo.” A obra é toda construída a fim de impactar o ouvinte com sua grandiosidade e inconformismo: uma luta. Beethoven, era de fato, um grande revolucionário, não só musical, como político. Suas manifestações artísticas são retratos de sua posição política e modo de viver. Ludwig, escrevia para todos, independente de suas especificidades. Algo não muito comum, uma vez que a maior parte de compositores de música erudita tinha como alvo nobres. Sua música era universal, fraterna e libertária. Somente com obras plurais, a liberdade seria alcançada. Sua arte é sinônimo de emancipação, neste sentido, traduzindo-se como libertar-se de algo ou alguém, no caso histórico, um grito contra regimes monarquistas e opressores da época. Sua luta era contra a opressão e desigualdades. Sua ideologia e cultura, emancipatórias, eram tão fortes a ponto de serem capazes de criticar fortemente sua grande referência, como Napoleão, e não cair em cegas idolatrias. A verdadeira arte é auto suficiente, mas porque traduz a realidade, a contesta, e ainda assim, não assume uma personificação humana.
Se no século XVIII, Beethoven transformava o mundo artístico e levava a discussão política na arte, o Rio de Janeiro em 1928, mudava sua realidade para além: o campo social, através do samba e, com atenção especial para o Samba da Mangueira, uma das mais respeitadas instituições do gênero no Rio de Janeiro. Localizada no morro homônimo, comunidade e escola se confundem. Tal território demonstra-se no lugar que laços de solidariedade, ações políticas, resiliência e resistência são fomentados pela cultura. Assim, formou-se de fato a Escola da Mangueira, com a intenção também de abandonar uma imagem negativa sobre o morro. Organizavam-se, para além do Carnaval, como um local de sociabilidade da comunidade e cidade, contando com a participação em diversos setores sociais.(Vaz de Macedo, Andrade, 2015 apud Martins e Pagani (2021) Tubino e Dória (2006) afirmam que a Mangueira foi a primeira escola de samba a obter o registro de assistência social.
Ainda que negligenciada por incentivos de fomento governamentais destinados à cultura, a Mangueira, continuou com diferentes vivências e diálogos, que trouxeram novas formações de locuções culturais e formaram um escopo para luta. Deste modo, o samba foi um importante formador em quatro posições, de acordo com Martins e Pagani (2021): 1) Autoestima e reconhecimento, nível individual e coletivo, a partir de ganhos econômicos. A escola de samba deu oportunidade de renda e trabalho não somente pelos desfiles, mas como um todo. Não unicamente em época de Carnaval, uma vez que a cultura adquire a capacidade de uma economia criativa nas comunidades, contando com negócios de arte, moda, gastronomia, instrumentos e outros (MARTINS; PAGANI, 2021). 2) Diálogos comunitários. A cultura consolidou uma identificação, que levou o diálogo de indivíduos do mesmo grupo, e até mesmo para diferentes classes, semelhante a ideia da torcida de um time de futebol. 3) Ação política coletiva. Sua noção de coletividade trouxe ações para discussões de pautas políticas e criação de mecanismos, como sindicatos de moradores e associações. 4) Resiliência. A partir da emancipação trazida pela cultura, onde indivíduos possuem condições de pensarem por si com senso de coletividade, oferece planos para uma sociedade mais igualitária e sustentável. Segundo Martins e Pagani (2021, p. 10), “A mudança interna, inicialmente, proporcionada pela cultura, mudou a forma como o cidadão se vê no mundo, alterando, por sua vez, toda comunidade.”
Resultante de sua mudança pela arte, a escola traduz em seus sambas-enredos, a luta e a visibilidade do morro para o asfalto. Em suas composições, por exemplo, com o Samba, Festa de um povo (1968), demonstram a favela sob uma visão diferente, composta por um espaço de diversidades e levada até para o estrangeiro. Pela poesia, alegria e beleza, contrariavam a visão de políticos da época, de que favela era sinônimo de problemas sociais. (MARTINS; PAGANI, 2021). Vianna (2007, p. 13) diz, “o samba é o porta voz, a fala e o instrumento de convívio e luta das camadas populares.”
Se no campo nacional e regional o samba foi de grande sucesso, contando como uma forma de emancipação e reconhecimento, internacionalmente viria a ser considerado um grande instrumento de política externa brasileira. Em 1940, a cultura popular brasileira surge como forma de promover os interesses brasileiros, o Ministério das Relações Exteriores buscou aproveitar a atração exercida pelo Samba e, mais tarde, pela Bossa Nova e pelo Cinema Novo sobre o público europeu e norte-americano para desenvolver o turismo internacional com destinação ao Brasil. Entendendo o tamanho do soft power, em 1960, o Brasil foi o primeiro país latino a criar uma “máquina diplomática cultural” com a fundação de serviços específicos no Ministério das Relações Exteriores para disseminação cultural. (DUMONT; FLÉCHET, 2009) No entanto, esta não teria sido a primeira experiência com a cultura exportada.
Um exemplo um tanto diferente sobre o Brasil e sua projeção é o personagem da Walt Disney, Zé Carioca. Entre 1942-1945 o papagaio foi desenvolvido pela Disney no contexto de 2a Guerra Mundial, em que a Política Externa Americana exercia sua ideologia de “Boa Vizinhança”, a fim de conter os ideais nazistas ou revolucionários ao redor da América Latina. Zé é um “típico” brasileiro: gosta de samba, malandro, festeja, bem vestido e extremamente caloroso. O pássaro foi feito com a intenção de vincular, em grande escala e para todas as gerações, que o Brasil é um grande amigo “gente boa” dos EUA, uma vez que até mesmo Pato Donald e Zé são amigos (BODART, 2019, p. 15). Esta imagem foi desenvolvida, naturalmente, em uma concepção rasa e não representativa do que de fato é o brasileiro. Elementos culturais marcantes foram “esquecidos”, tais como a representação negra e diversidades, no geral. Esta aparência ficou tão consolidada que até mesmo os próprios brasileiros enxergam em Zé, si mesmo, mesmo que de forma incompleta e acrítica. Ao reduzir uma cultura em um estereótipo, como do Zé Carioca, há o controle sobre o que existe ou não.
Diferentemente da cultura pelo amado pássaro carioca, a cultura como instrumento de PEB é recolocada como no longa “Arte da diplomacia”, pelo diretor Zeca Brito e sua co-produtora Celina Borges Torrealba Carpi. O trabalho trata sobre a remessa de diversas pinturas brasileiras modernistas para o Reino Unido no contexto da Segunda Guerra Mundial. O movimento modernista, iniciado no Brasil na década de 20, é um momento de ruptura e crítica a ideias tradicionais. Nesse período o mundo vivia grandes guerras mundiais, crises e revoluções, ao mesmo tempo em que se despontavam grandes avanços tecnológicos e inovações científicas. Trata-se, mais do que uma crise política e econômica, de uma ruptura de paradigmas que levou a Civilização Ocidental a repensar suas diretrizes e crenças mais básicas. Pensadores do período foram ensejados a reinterpretar as normativas naturalizadas pela visão de mundo até então homogênea e, no caso da arte, isto significou a cooptação de novos motivos e temas, bem como a busca pela criação de estilos que se alinhassem com os ideais da nova configuração que deveria ser retratada.
No contexto nacional, a Revolução de 1930 serviu como ruptura política que oficializou a vinda de um “Estado Novo”, e, não coincidentemente, foi estilo modernista o abraçado para simbolizar esteticamente a fratura com a “República Velha” e seu Neoclassicismo eclético. Contudo, se Vargas adotava o modernismo como ícone estético para simbolizar a ruptura não apenas política, mas histórico-temporal, na Alemanha Nazista esse estilo era completamente rechaçado e condenado. Isso porque lá a ruptura não seria na forma de uma guinada “adiante”, pelo contrário; buscava-se eliminar os traços da civilização moderna “degenerada” em favor de um retorno à tradição clássica (e, muitas vezes, inventada) germânica, o “apogeu” sócio-político, mas sobretudo cultural, da raça humana. Por isso, curiosamente, para além do envio de tropas, as doações de obras de arte feitas pelo Governo Brasileiro no contexto da Segunda Guerra marcaram um posicionamento político contundente e afirmativo em que o país se colocou em uma postura confrontativa aos inimigos, não por conflito bélico, mas simbolicamente por meio de ideais e materializados em representações culturais. Em uma Política Externa, antes de tudo, tal como Bodart (2019) elucida, um país reflete inconscientemente sua identidade nacional. Entretanto, pode também traduzir o fruto de ações compartilhadas, por outras culturas, em que as imagens nacionais reduzem-se a si para se adequar a um corpo incompleto. Ter consciência de sua força e identidade é primordial para o poder brasileiro em nível nacional quanto internacional, como o exemplo da “Diplomacia das Artes”, e o Samba da Mangueira, em que utilizou-se da emancipação dada pela cultura, uma forma de crítica instrumentalizada na política externa. O caso de Zé, reflete uma manifestação crítica e incompleta, o que muita das vezes é observado tanto em nível nacional, quanto internacional. A emancipação, tal como uma política emancipatória só é desenvolvida através da criação de condições que as propiciem.
PARTE 2 - A SOCIOLOGIA DA EMANCIPAÇÃO
A sociedade é fruto de relacionamentos. Destes, cria-se uma história, uma utopia: um porquê. A identidade, é resultado dessas interações. Dela, forma-se a política e fomenta uma ideologia (Ciampa, 1987). Deste modo, não é de se admirar o tamanho da sua importância quando se analisa a formação de Estados e culturas. Ao mesmo tempo que se alia com a noção de pertencimento e liberdade, pode se enxergar antes de tudo, as relações do poder e processos hegemônicos que as sustentam. Identidades possuem traços de choques de interesses, hierarquias e podem ser instrumentalizadas como manutenção e regulação social em conjunto com uma de suas manifestações: a cultura. (Sawaia, 1995)
A emancipação, neste contexto, é fruto da auto-consciência. Diga-se, tal ciencia de si, mais uma vez, é resultado do reconhecimento que uma identidade e uma cultura podem proporcionar. É a noção de pertencimento. Mas o modo e a qualidade como a relação entre identidade-cultura-indivíduo é feita, determinará a emancipação, e não o contrário. A emancipação é resultado de uma identidade e cultura consciente, ela não existe sem essas premissas. Definir como emancipatória, conduz identificar uma moralidade central: a eliminação opressão e hierarquizações sobre minorias, e a criação de condições para o desenvolvimento humano. Não traduz apenas um pensamento de caráter individual, e sim, coletivo.
A emancipação acontece por meio de uma compreensão profunda do conhecimento, indo além do simples acesso a ele. É o ato de pensar a informação, de modo em que não se enxergue unicamente aquele dado, e sim todas as relações que transformam determinado fenômeno em algo para além, complexo. Materializando tal raciocínio, um exemplo da racionalidade emancipatória pode ser observado no samba da Mangueira, como visto anteriormente. A manifestação cultural é fruto de uma identidade trazida por africanos vindos cativos e reescrita na sociedade a cada momento através de novas interações, A noção de auto-afirmação, reconhecimento, ação coletiva, faz com que os indivíduos mostrem o que é ser da Mangueira, para além do samba. Busca-se diálogos sociais e políticos, compreendendo a carga histórica de sua identidade e cultura. Lutando e agindo. Apresenta–se sua Arte, desigualdades, lutas, e tal como seu reconhecimento, não exclusivamente a própria comunidade, como para toda a população. Assim, tenta conscientizar a todos sobre as questões. A noção de que o desenvolvimento é coletivo, e não unitário. Deste modo, a política é resultado de uma cultura emancipatória.
No entanto, não é somente o ato de reagir a determinada ação exploradora e opressora, mais uma vez. É a consciência por trás da ação, racionalizada, que realmente emancipa. Theodor Adorno, um importante filósofo e sociólogo alemão, apresenta quatro conceitos que são primordiais para o entendimento emancipatório: formação e semiformação; cultura e semicultura. A cultura é a tradução de toda ação humana sobre um determinado contexto social e natural, resultado de identidades, como visto anteriormente. Tal, resulta de fenômenos únicos em áreas como religiosa, política, econômica, artística e social. (IOP, 2009). Em termos mais claros, a Educação, Filosofia, Literatura, Ciências e a Arte são suas formadoras culturais, através de sua específica identidade. A cultura tem como característica a crítica, de modo que o pensar e a consciência tem papel fundamental em sua manifestação. A cultura é emancipatória por natureza. A formação, por sequência, diz a respeito do indivíduo ou grupo que tiveram acesso de modo integral à cultura e suas características. Ambas, se retroalimentam de forma em que uma é a condição para a existência da outra. Somente possuirá formação aquele ser que teve acesso a cultura consciente, e somente entenderá de fato a cultura aquele que teve formação consciente.
Em contraponto, a semicultura traduz o acesso à cultura de modo parcial, em que sua principal característica, a crítica, é apagada ou deslocada de lugar. Esta, é resultado de um processo feito pela Indústria Cultural (IC), em que torna a cultura como produto de venda. A IC, neste sentido, traduz-se como uma lógica de produção e transformação de bens culturais, a fim de “relativizar” e “resumir” seus valores e construções, criando algo totalmente diferente. A semiformação, a acompanha no momento em que é resultado da assimilação de uma cultura parcial e acrítica. O personagem de Zé Carioca, apesar de extremamente carismático e amado, pode ser considerado resultado de uma manifestação semicultural. Zé é desenvolvido através de um estereótipo do brasileiro, o que reduz a diversidade cultural, suas histórias e relações. Além de suas características, ele não tem a menor intenção de crítica emancipatória, pelo contrário, trata-se da manutenção de uma identidade semi formada. O autor Nelson Palanca (2003, p. 141), traduz que a “semiformação diz respeito à banalização da cultura.” Banalizar, como já acompanha a história, é algo extremamente perigoso, uma vez que a perda de referência e valores, em conjunto com desumanização, são seus semelhantes.
A “cultura de massas” pode ser vista hoje como resultado da semiformação. O consumo semicultural, através da IC, cria um conteúdo ideológico em que propicia a alienação em relação à realidade social.(IOP, 2019) Não é muito incomum, mesmo nos dias atuais, vermos o conceito de “liberdade de expressão” sendo utilizado como prerrogativa para falas preconceituosas, atos anti-democráticos e apologias ao nazifascismo, por exemplo.(reportagem) Realizações deste modo, são resultado de uma formação não emancipada e acrítica. A banalização da cultura é vista quando cria-se uma linha invisível entre o “Nós” e o “Eles”. A semiformação e a semicultura não reconhecem seu diferente e as declaram como ameaça, pois o “Eles”, ameaçam seu suposto “mundo tradicional”: resultado da alienação.
É importante destacar que o “status social” não é sinônimo, de forma alguma, de “formação” ou "semiformação”. Pode-se ter ascensão profissional, bem como a conquista de um título de destaque, mas isto não significa que podemos observar a existência de processos emancipatórios (ALMEIDA, 2017). Ademais, como já observado anteriormente, uma cultura também é resultado de relações de poder e hierarquias, principalmente quando não-crítica. Isto significa que, mesmo diante de um excelente “status”, a manutenção de uma estrutura alienada pode acontecer. Do mesmo modo, enquanto “alto status” não define consciência, também é extremamente possível encontrar em zonas consideradas marginalizadas uma cultura e formação cultural emancipatória e consciente, como o Samba da Mangueira se apresenta.
Tanto Beethoven, o samba da Mangueira, quanto a 'Diplomacia das Artes' compartilham um traço comum e poderoso: a capacidade da arte, em sua essência, de promover a emancipação. Nietzsche, apesar de ser conhecido superficialmente por seu “pessimismo” filosófico, encontra na Arte, mais especificamente na “Dança", a manifestação da elevação e alegria da vida. Não se procura uma arte que não seja expressão da vida, somente o dançarino alcança a consciência e vai além. Por tal, somente uma “arte dançarina” (FW/GC § 107)2, com sua suavidade e crítica levarão o indivíduo ao ponto mais alto, usufruindo a liberdade. Diante da semicultura, irracionalidade e exploração, “não se tem somente de superá-las, mas também dançar, “julgar e valorar” sobre a própria moral” (GUERVÓS, 2003). Aqui, metamorfoseia-se a palavra “dançar” por “sambar”, e enxerga-se um resultado muito interessante. Nietzsche, talvez, seria um excelente sambista. O indivíduo que não conhece a arte, sabe muito pouco sobre si.
A emancipação não vem da dor, da mizera. Para Nietzsche, toda arte deve nascer do amor da vida, da alegria, e não da fome e do desejo de vingança.(NIETZSCHE ,1980). É a afirmação de quem é, de sua força e amor pela vida. Portanto, valoriza-se a autoconsciência e resiliência perante as condições exploratórias.
Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes (oh)
Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência (oh)
É roubar o pouco de bom que eu vivi
Por fim, permita que eu fale,
não (não) as minhas cicatrizes (oh)
Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes
É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir (EMICIDA,2019)
O trecho acima, cantado por Emicida na música “Amarelo”, de autoria do próprio, trata da visibilidade além da dor, além da marginalização de minorias. De fato, não se pode ignorar as condições e processos desumanos em que determinado grupo é inserido. No entanto, há vida para além de cicatrizes e é neste momento que a cultura emancipadora entra, fruto da identidade e o empoderamento na própria. O enxergar deve ser feito no indivíduo, e não em suas mazelas. Para Martins e Pagani (2021), as comunidades são mais do que estigmas de violência e o crime, como Emicida e o Samba da Mangueira pontuam. Elas possuem ricas expressões estéticas e culturais. A cultura é compartilhada por cada indivÍduo, por história, valores e projetos.(Barbosa 2017 apud Martins e Pagani 2021). Neste entendimento, a política é a manifestação de ideias, em que são compartilhados pela cultura. Para uma política emancipatória, a cultura emancipatória torna-se sua premissa. E deste modo, a emancipação se dá pelo reconhecimento de forma crítica e consciente, levando-se a um estado de autonomia. Aqui, traduz-se tal como a forma de se relacionar com terceiros de modo igualitário, distante de desavenças irracionais. Assim, baseia-se na auto-expressão, o reconhecimento de si e do próximo. (Almeida, 2005). Ela não é inteira por si, pois sua integridade é a visão do todo, tal como um meio para a identidade emancipatória. Em outras palavras, autonomia é o reconhecimento do valor do próximo, tal como a ti mesmo, e a forma como tudo e todos interagem entre si, sendo o veículo para a emancipação
PARTE 3. DROIT À LA VILLE
“ A "independência" só se alcança, quando a consciência política do País, impelida pelo processo de suas próprias contradições, logra refletir e apreender a realidade nacional, e passa a identificar, no quadro topográfico de suas relações com outros povos, a posição e o itinerário que lhe permitem alcançar suas finalidades.” (SAN TIAGO DANTAS, 1963)
As falas do diplomata San Tiago Dantas, em seu discurso da turma de diplomatas 1963, demonstram que o desenvolvimento, tanto interno, quanto externo só poderão ser possíveis através da conscientização racional comunitária. A questão brasileira de subdesenvolvimento, não é parte de um “país adolescente”, que se resolve através do tempo, e sim de um estado de submissão e inferioridade que somente a consciência estrutural potencializada pela cultura, pode intervir. Não cabe a política mais inovadora, nem mesmo líderes com grandes ideias, e sim condições populares para além do exercício da Semicultura, por Adorno, em que os indivíduos vivenciam em parte a emancipação por meio da cultura. A questão emancipatória relaciona-se com a identidade, determinante quanto ao reconhecimento empoderado do indivíduo ou grupo sobre a situação o qual está inserido. Tal condição é necessária para atingir um conhecimento, completo e racionalista que desafie as relações de opressão e subdesenvolvimento, em conjunto com o amadurecimento humano e cidadão. A identificação, para além das condições e definição sobre o propósito moral de ser atingido, resulta mais adiante do desenvolvimento individual, para o coletivo.
As manifestações brasileiras culturais, tanto em nível nacional quanto em sua projeção internacional, traduzem que a cultura é um importante fomentador de mudanças. O ponto, cá retratado, é a qualidade do processo transformador pelo que se luta. Basear-se na arte em essência, emancipatória por excelência, é o que de fato gera uma mudança, pois é a autoconsciência, de modo crítico. Beethoven, quando escreve a Eroica, materializa a emancipação crítica em forma de arte. Quando rompe sua admiração com sua referência (Napoleão), traduz que há solidez de valores em sua consciência. Antes de idolatrar algo ou alguém, a cultura emancipatória escolhe a vida e suas condições para exercê-la. Reflete, assim, a qualidade do processo emancipatório que é feito. Tal como proposto por Adorno, a verdadeira cultura é crítica. No entanto, não basta somente o resultado em si, e sim a qualidade do processo (formação). Em exemplos claros, o ponto não é o apoio de Beethoven a Bonaparte por ser um revolucionário, e sim porque o compositor acreditava, antes de tudo, em valores críticos à opressão. Na atualidade, não basta somente o crescimento de manifestações culturais ou políticas a favor de Direitos, e sim a qualidade que tais são feitas. Apenas intensificação de representações na arte de minorias, de modo superficial, proporcionado pela Indústria Cultural tenderá a ser sinônimo de semi cultura. Desta forma, não cria-se condições verdadeiras para consciência ou política emancipada.
Embora pareça um personagem 'simples', Zé Carioca carrega ideias que contrastam com uma cultura plenamente emancipatória, como por exemplo a redução da imagem brasileira a um simples estereótipo e a manutenção de uma hegemonia americana. Lembre-se, Zé é um amigo gente boa, coadjuvante. Pato Donald, este sim é o protagonista. As identidades, como visto, são complexas. Reduzindo-se a uma simples parte, perde-se sua essência, seus valores, suas relações e assim, banaliza o ser. Cuidado com banalizações. A não racionalidade por trás de tal resulta em uma semicultura, e ela está longe de ser uma boa ferramenta política, interna ou externa. Exemplos de sucesso como o Samba da Mangueira retratam que a cultura, resultado de um processo emancipador e empoderado, fornecem não só o desenvolvimento nacional quanto internacional. O sucesso da cultura brasileira é visto pelo mundo. Desde escolas japonesas ensinando sobre samba(reportagem), até carnavais “brasileiro” em outros países, como o famoso “Notting Hill Carnival” em Londres(reportagem). Para além da alegria, o samba muda vidas. A cultura muda vidas. Assim como o samba, a campanha relatada pelo documentário “Diplomacia das Artes” pode ser uma das maiores concretizações sobre o que é uma política externa emancipada, pois antes de tudo, é cultural. A Arte é crítica, é uma forma política de expressar-se. Não se faz política através de simples instrumentos, e sim por pessoas. A política é resultado de uma cultura.
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