Após mais de 60 anos desde a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2011, em uma decisão histórica, reconheceu os Direitos LGBT como Direitos Humanos, sendo assim equiparados a outros direitos já estabelecidos na Declaração e os tornando passíveis de integral proteção internacional pela Organização.
A criação dos Direitos Humanos é destacada a fim de reestruturar a ordem mundial, afinal, fez-se necessária a invocação de meios de proteção para que o ser humano não fosse mais visto como descartável, uma vez que, na Segunda Guerra Mundial, a importância da vida humana foi posta de lado, pois inúmeros foram os perseguidos em razão de sua origem, etnia, crença, religiosidade, posição política, inclusive em razão da orientação sexual.
Sá Neto (2015, p. 25) explica que, “o conceito do ser humano como valor-fonte [...], tornou-se estranho ao totalitarismo, pois, nesse regime, o ser humano era tido por descartável”. Ou seja, o mundo percebeu que o ser humano visto sem valor por décadas carecia de proteção, a fim de que nunca mais, nenhuma vida fosse vista como insignificante em relação a outra, mas que todos tenham o mesmo grau de proteção.
No entanto, ainda que os homossexuais tenham sofrido perseguição durante o nazismo, a orientação sexual ficou de fora do rol de proteção estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Estima-se que 50 mil homossexuais tenham sido processados e condenados, sendo que destes, entre 5 mil e 15 mil tenham sido enviados aos campos de concentração sob a institucionalização em 1935, do Parágrafo 175, do Ministério da Justiça, que condenava as relações homoafetivas entre os homens.
A grande verdade é que a comunidade LGBT só começou a se formar após 1969, com a Rebelião de Stonewall, um bar situado na região do Greenwich Village, em Nova Iorque nos Estados Unidos (EUA), que rotineiramente era invadido pela polícia para realizar as batidas policiais, as quais eram extremamente violentas e abusivas.
Àquela época, a homossexualidade era listada como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) através do Código Internacional de Doenças (CID), como um tipo de transtorno mental, sendo inclusive proibida nos EUA sob as Leis de Sodomia, que proibiam a relação homoafetiva, sendo, inclusive, liberada as terapias de conversão como espécie de cura gay, que incluíam tratamentos com choque, castração, esterilização dos homossexuais, além da Lei de Masquerade que atingia travestis e transexuais, já que proibia o uso de roupas diversas ao sexo.
Dessa forma, no dia 28 de junho de 1969, exaustos da opressão e segregação, os frequentadores do Bar Stonewall Inn, resolveram se rebelar contra mais uma batida policial. Enquanto a polícia sacava armas, os manifestantes contra-atacavam jogando coquetéis de molotov sob os gritos de “gay pride” e “gay power”. Ao todo, a rebelião durou dois dias e foi consagrada como o grande marco da comunidade LGBT.
A Rebelião de Stonewall, definido por Patrícia Gorisch (2014, p. 27) como o “marco inicial da luta pelos Direitos Humanos LGBT”, motivou o surgimento de inúmeros protestos, sendo inclusive, atualmente, a data de 28 de junho, reconhecido como o Dia Internacional do Orgulho LGBT.
A ONU, cuja criação se deu em 1945, apenas começou a abordar a temática LGBT em 1980, quando ao informar sobre a epidemia da AIDS/HIV à época, relacionou a doença à homossexualidade. Durante todos esses anos, o estigma, o preconceito e a discriminação foram carregados pelas pessoas LGBT, até que em 1990, a OMS retirou o "homossexualismo” da CID-10 (Classificação Internacional de Doenças).
A primeira grande decisão internacional sobre a temática LGBT foi em 1994, no caso “Toonam versus Austrália” em virtude de uma lei australiana à época da colonização britânica no país que criminalizava a homossexualidade. Fundamentado no artigo 17, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ICCPR), o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas considerou que a referida Lei violava os direitos humanos, os pactos e tratados consentidos pela Austrália.
Após o caso, surgiram outras grandes decisões internacionais abordando a temática LGBT, como o de “Alexandre Medinos versus Chipre”, no qual a Lei Antissodomia existente à época no país foi considerada ilegal pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Em 1996, houve o caso de “Marta Lucia Alvares Giraldo versus Colômbia”, que, em denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a autora assegurou seu direito à visita íntima na prisão, direito que estava sendo negado em razão de sua orientação sexual, dentre outros.
Em 2009 no Brasil, um caso de grande repercussão foi o da “Luiza Melinho versus Brasil”, no qual, em denúncia à Corte Internacional de Direitos Humanos foi afirmado que o Brasil era um Estado violador de Direitos Humanos, afinal, Melinho havia sido impedida de realizar uma cirurgia de redesignação sexual. Na decisão do processo, foram relembrados os casos brutais de assassinatos de travestis e pessoas transexuais no país, havendo ainda uma chamada de atenção para que o Brasil passasse a investigar e sancionar os responsáveis, bem como adotasse medidas públicas para diminuir a violência contra esse grupo.
Finalmente, em 2011, em uma decisão histórica, através da Resolução de nº L9, a ONU, em Assembleia Geral, reconheceu que os direitos das pessoas LGBT também devem ser considerados como Direitos Humanos, nas mesmas diretrizes de Tratados Internacionais acerca do tema, e afirmou que os países que restringissem os direitos de pessoas LGBT estariam desrespeitando os acordos internacionais de Direitos Humanos.
Após o reconhecimento, foi emitido o primeiro relatório mundial da ONU sobre os Direitos Humanos LGBT. Nele, foram evidenciadas que as violências sofridas pelas pessoas LGBT ocorrem em todos os lugares do mundo, bem como foram identificados os principais Estados infratores, baseando-se em leis discriminatórias e a incitação de violência contra esses indivíduos.
Atualmente, em pelo menos 70 nações membros da ONU, a homossexualidade ainda é considerada crime, sendo que, destes 70 países, a pena de morte para pessoas que tiverem práticas homossexuais existe em 6 países, e em outros 26 países, a pena máxima para atos homossexuais varia entre 10 anos e prisão perpétua, e em 31 deles, a homossexualidade é passível de punição com até 8 anos de prisão (EL PAÍS, 2019).
Um debate que ganha fôlego se dá a respeito ao alcance dos Direitos Humanos e há duas correntes internacionais que versam sobre isso:
- O universalismo que considera os Direitos Humanos como universais, em razão de seus textos, havendo uma flexibilização da autonomia estatal e de sua autodeterminação, tornando a jurisdição doméstica passível de limitação em virtude de um bem maior - a vida humana e sua liberdade individual; e
- Os relativistas, que limitam os direitos humanos em razão da cultura coletiva de um determinado país, levando em consideração o tradicionalismo.
Desse modo, Sá Neto expõe que:
"Se a ideia de proteção dos direitos humanos não se reduz à proteção Estatal [...], mostra-se imprescindível a realização de uma revisão da noção tradicional de soberania, eis que esta passa a ser alvo de um processo de relativização, na justa medida em que se admite intervenções da sociedade internacional na perspectiva de proteção dos direitos humanos [...]. Uma das consequências da ideia de universalidade dos direitos humanos [...], é que até mesmo o Poder Constituinte deve se submeter à tutela internacional dos direitos humanos, desconstruindo a noção de que esse poder é ilimitado." (Sá Neto, 2015, p.37)
Atualmente, a ONU tem se tornado cada vez mais proativa na agenda LGBT, a fim de informar em escala mundial, que direitos LGBT fazem parte dos direitos humanos, e denunciar os abusos e violações que minorias sexuais sofrem em decorrência de uma orientação sexual ou em virtude de uma identidade de gênero.
Para isso, em 2013, foi fundada a campanha mundial Free & Equal, em português, livres e Iguais, que tem como pressuposto o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”, reafirmando a universalidade dos direitos humanos.
Thiago Lima
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Decreto n. 592, de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CIDH condena assassinatos de mulheres trans no Brasil, 05 set. 2012. Disponível em: <https://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2012/113.asp>. GORISCH, Patrícia. O reconhecimento dos direitos humanos LGBT: de Stonewall à ONU. Curitiba: Appris, 2014.
MANTOVANI, Flávia. Relação homossexual é crime em 70 países, mostra relatório mundial. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 mar 2019. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/ mundo/2019/03/relacao-homossexual-e-crime-em-70-paises-mostra-relatorio-mundial.shtml>. Acesso em: 06 set. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em:<https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos>.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução n. A/HRC/17/L.9/Rev.1, de 15de junho de 2011. Direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero. Disponível em: < https://undocs.org/A/HRC/17/L.9/Rev.1>
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nascidos livres & iguais, c2013. Disponívelem:https://www.ohchr.org/Documents/Publications/BornFreeAndEqualLowRes_Portuguese.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2020
SÁ NETO, C. E. Diversidade sexual: direito humano ou direito a ser humano?. [S.l.]: Deviant, 2015. E-Book
LIMA, T. H A L. A evolução da diversidade sexual no cenário internacional: Os direitos LGBT como direitos humanos. 2020. 47 f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em Direito) - Escola Superior Dom Helder Camara. Disponível em: < http://tede.domhelder.edu.br/handle/tede/80>.
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