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Foto do escritorKathelly Menezes

Olimpíadas de Paris: a luta silenciosa de atletas contra crises humanitárias

Atualizado: 18 de set.

“O sentido da política é a liberdade”, nas palavras de Hannah Arendt (O que é Política, 1998) e, apesar de existirem outras tantas definições e sentidos de política, o fragmento apresentado possui uma ligação singular com o ato de realizar uma manifestação em busca de liberdade, mesmo que essa esteja longe de ser alcançada. Afinal, se tudo é político e o ser humano é um ser político, o esporte não seria um espaço distante dessa realidade. Ainda mais quando estamos falando de uma competição a nível mundial em que todos os holofotes estão voltados para ela, como é o caso dos Jogos Olímpicos.


O atleta assume, dessa forma, um duplo protagonismo. Está focado no esporte praticado que requer uma preparação diária para alcançar seu mais alto desempenho e lograr um bom resultado na competição. Mas, ao mesmo tempo, é possível visualizar o atleta não tendo um fim em si mesmo e transcendendo seu papel de esportista. É nesse exato momento que ressurge o cidadão, o ser humano intimamente interligado com a realidade do país que defende.


Na Olimpíada de Paris 2024, existiram manifestações em que o atleta exerceu seu papel de um ser político, trazendo o debate para crises humanitárias, não só com a intenção de protesto, mas também de recordar ao mundo a existência daquela situação.


Uma dessas manifestações foi a da boxeadora Marcelat Sakobi, da República Democrática do Congo, que competiu na categoria até 57kg. Em sua segunda participação olímpica, Sakobi enfrentou a uzbeque Sitora Turdibekova, mas foi derrotada. Entretanto, esse momento não a impediu de realizar um gesto que consistia em colocar a mão na frente da boca e os dois dedos na cabeça, simbolizando uma arma. O gesto da atleta foi um ato de protesto contra os conflitos armados e a violência persistente em seu país.


A República Democrática do Congo enfrenta há anos uma grave crise humanitária, marcada por um conflito armado que gera violência desordenada com inúmeras violações de direitos humanos, especialmente na região leste, onde diversos grupos armados disputam o controle de recursos naturais, resultando em milhares de mortes e deslocamentos forçados de civis.


De acordo com o Relatório do Global Data Institute, já são mais de 1,6 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar suas casas desde março de 2002. Relatos de sobreviventes incluem denúncias de violência sexual, recrutamento forçado de crianças para fazer parte de grupos armados e surto de doenças nos acampamentos improvisados para as pessoas deslocadas.


O ato de Sakobi nas Olimpíadas é uma nítida tentativa de dar visibilidade a essa crise e de buscar por ajuda para que não existam mais vítimas.


  Esse, entretanto, não é o único conflito armado existente no mundo, de modo que também não foi a única manifestação nas Olimpíadas contra a morte de inocentes. Dessa vez, foi relacionado aos ataques de Israel à Faixa de Gaza que já duram mais de 10 meses.


Waseem Abu Sal, de 20 anos, é o primeiro boxeador a representar a Palestina nas Olimpíadas. Natural de Ramallah e porta-bandeira da delegação palestina, vestiu uma camisa durante a cerimônia de abertura. branca com um design que trazia mísseis direcionados a uma criança que joga futebol. Ao escolher essa vestimenta, o boxeador palestino expressou seu repúdio à violência que aflige sua terra natal e fez um apelo por paz e justiça.

A imagem do atleta vestindo a camisa com os bordados rapidamente viralizou nas redes sociais, e a mensagem foi amplificada quando, durante a foto oficial, Abu Sal apontou diretamente para os mísseis retratados em sua roupa, deixando clara a sua intenção de denúncia.


Segundo a Palestina, até agosto, o número total de vítimas fatais já estava chegando aos 40 mil. Mas a cifra de cidadãos atingidos é bem maior do que esse, chegando a mais de 90 mil feridos e outros tantos milhares que sofrem com deslocamentos forçados, colapso do sistema de esgoto, doenças infecciosas, dificuldade de acesso a água e alimentos. De fato, a população civil é a mais atingida com os ataques que estão sendo feitos a hospitais, escolas e até locais que servem como abrigo para refugiados.


A escolha de Abu Sal em chamar a atenção para essa situação reflete a urgência e o desespero de muitos palestinos que vivem sob constante situação de violência. A ação do boxeador é um lembrete da função social do esporte e do poder de uma imagem para provocar reflexão e mudança.


Todavia, nem toda crise humanitária decorre de conflitos armados violentos. E foi justamente na tentativa de romper uma opressão e buscar por liberdade que Manizha Talash, uma refugiada afegã de 21 anos, gritou em meio ao silêncio contra o regime do Talibã durante a competição de breakdance. Sua luta se manifestou através da roupa utilizada que continha a frase: “Libertem as mulheres afegãs” durante a fase pré-qualificatória.

Apesar de sua derrota para a holandesa India Sardjoe, que a impediria de avançar na competição, a desclassificação oficial veio como consequência direta de sua exibição da mensagem política, o que a Federação considerou uma infração grave às normas esportivas. Em sua declaração, a Federação enfatizou que slogans políticos são proibidos, justificando assim a desqualificação da atleta. Tal decisão, se justificou com base no art. 50, n. 2, da Carta Olímpica.


O gesto de Talash é profundamente simbólico, dado o contexto de repressão que as mulheres enfrentam atualmente no país. Desde a retomada do poder pelo grupo fundamentalista em 2021, a liberdade e direitos das mulheres têm sido severamente restringidos, incluindo a proibição de acesso à educação, ao trabalho, a carteira de habilitação, além de outras formas de repressão social e cultural.


A ação de Talash nas Olimpíadas foi uma tentativa corajosa de chamar a atenção global para a situação das mulheres afegãs, utilizando a visibilidade proporcionada pelos Jogos Olímpicos para amplificar sua mensagem de resistência e liberdade.


Entre tantos silenciamentos, estes atletas, no meio de tantos outros, foram porta-vozes dos seus povos e das suas dores. Dar voz e visibilidade a essas manifestações é uma forma de tornar o debate mais amplo sobre tantas violações de direitos humanos que seguem acontecendo, mas que nem sempre são noticiadas com frequência e acabam caindo no esquecimento.


A Olimpíada de Paris já se encerrou, mas as crises humanitárias na República Democrática do Congo, na Palestina e no Afeganistão seguem como uma competição implacável, onde a violência contra civis substitui as regras do jogo, e as vítimas continuam a ser os espectadores silenciosos dessa luta desumana por sobrevivência.


Dica cultural

Para quem se interessou pelo tema aqui abordado, deixo como recomendação o filme “Raça” de 2016 que retrata a história de Jesse Owens, atleta americano que enfrentou o racismo e participou dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, em pleno regime nazista, conquistando 4 medalhas de ouro.

 


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