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Foto do escritorMariana Pires Soares

O Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos

O sistema africano de proteção dos direitos humanos é o sistema mais recente dentre os existentes, e ainda se encontra em consolidação e construção (PIOVESAN, 2019). Dois momentos são marcantes para o desenvolvimento do sistema africano: a aceitação da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em 1981, e a criação da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em 2004.

A recente história do sistema regional africano revela, sobretudo, a singularidade e a complexidade do continente africano, a luta pelo processo de descolonização, pelo direito de autodeterminação dos povos e pelo respeito às diversidades culturais. Revela, ainda, o desafio de enfrentar graves e sistemáticas violações aos direitos humanos (PIOVESAN, 2019, p. 270).

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, também chamada de Carta de Bonjui, foi adotada em 1981, pela então Organização da Unidade Africana, substituída pela União Africana a partir de 2002. Atualmente a Carta conta com a ampla adesão de 54 Estados africanos.

A Carta, considerando os aspectos específicos do continente africano, apresenta uma feição própria e peculiar, que se difere das Convenções Europeia e Americana. Seu preâmbulo evidencia o respeito à tradição histórica e aos valores da civilização africana, que inspiram e caracterizam a Carta para os conceitos de direitos humanos e dos povos. Nesse sentido, ressalta-se o “direito dos povos” que é expressivo na Carta e, portanto, exprime sua perspectiva coletivista, o que difere dos instrumentos dos outros sistemas.

Outro ponto de destaque é o processo de libertação da África, por meio do qual busca-se eliminar todas as formas de colonialismo, neocolonialismo, apartheid, sionismo, e desmantelar as agressivas bases militares estrangeiras e todas as formas de discriminação, em especial as que se baseiam na raça, etnia, cor, sexo, língua, religião ou opinião política.

A Carta é, portanto, dividida em três partes: a primeira trata dos direitos e deveres; a segunda determina as medidas de salvaguarda dos direitos previstos, na qual são elaboradas normas relativas à Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos; e a terceira parte corresponde a disposições diversas.

A peculiaridade da situação africana e as qualidades especiais da Carta Africana impõem à Comissão Africana uma tarefa importante. O direito internacional e os direitos humanos devem oferecer uma resposta às circunstâncias africanas. Claramente, direitos coletivos, direitos do ambiente e direitos económicos e sociais são elementos essenciais dos direitos humanos na África. A Comissão Africana irá aplicar qualquer dos diversos direitos contidos na Carta Africana. Ela aproveita esta oportunidade para deixar claro que não há um direito na Carta Africana que não possa ser tornado efetivo.[1]

A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos


A Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos é o órgão responsável pela “promoção dos direitos humanos e dos povos e garantir sua proteção na África” (art. 30). Ela é composta por 11 membros, que servem a título pessoal, “escolhidos entre personalidades africanas que gozem da mais alta consideração, conhecidas pela sua alta moralidade, sua integridade e sua imparcialidade, e que possuam competência em matéria dos direitos humanos e dos povos” (art. 31).

Os membros são eleitos por meio de uma votação secreta pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo, a partir de uma lista de candidatos apresentadas pelos Estados-partes da Carta (art. 33). Cada Estado-parte pode apresentar, no máximo, dois candidatos, devendo ser nacionais de um dos Estados-partes da Carta, mas não de um mesmo Estado (art. 34). O mandato dos membros da Comissão dura seis anos, com possibilidade de reeleição, porém, semelhantemente à CIDH, o mandato de quatro dos membros eleitos quando da primeira eleição cessa ao cabo de dois anos, e o mandato de três outros ao cabo de quatro anos.

Quanto às suas competências, conforme posto no artigo 45 da Carta, cabe à Comissão: a) a promoção dos direitos humanos e dos povos, por meio da sensibilização, mobilização pública e disseminação de informações por meio de seminários, simpósios, conferências e missões; b) a proteção dos direitos humanos e dos povos, por meio do seu procedimento de comunicação, solução amistosa de disputas, relatórios de estados (incluindo consideração dos relatórios-sombra das ONGs), apelos urgentes e outras atividades de relatores especiais e grupos de trabalho e missões; c) a interpretação da Carta, que pode ser requerida por Estados-partes, órgãos da União Africana ou indivíduos[2].

Em relação ao procedimento, compete à Comissão apreciar comunicações interestatais e as petições encaminhadas por indivíduos ou ONGs que denunciem violação de direitos enunciados na Carta, é o chamado “procedimento de comunicação”. Da mesma forma que nos outros sistemas, as comunicações encaminhadas para a Comissão devem cumprir com requisitos de admissibilidade, os quais estão dispostos no art. 56 da Carta. Destacam-se: ser posterior ao esgotamento dos recursos internos, se existirem, a menos que seja manifesto para que o processo relativo a esses recursos se prolonga de modo anormal; ser encaminhada dentro de um prazo razoável após o esgotamento dos recursos internos; e a questão não pode ter sido objeto de casos resolvidos pelos procedimentos da ONU ou da União Africana.

Uma vez que uma comunicação (ou petição) tenha sido admitida, a Comissão irá buscar uma solução amistosa entre os Estados interessados. Se esta solução não for encontrada, a Comissão faz requerimento às partes para proverem, no período de 30 dias submissões escritas, e, qualquer informação recebida deve comunicar à outra parte. Em seguida, é preparado um relatório contendo os fatos, as conclusões, e, se encontradas violações à Carta, as recomendações à consideração da Comissão. Antes de adotar o relatório, no entanto, a Comissão deve convocar uma audiência na qual será permitido às partes apresentarem observações orais adicionais.

É importante ressaltar que, a qualquer momento desde o recebimento de uma comunicação e antes da determinação sobre seu mérito, a Comissão pode, por sua própria iniciativa ou a requerimento de uma parte do caso, requerer que o Estado denunciado adote medidas provisórias para prevenir danos irreparáveis para a vítima ou vítimas da suposta alegação, na urgência que o caso requer.

Ainda, é de competência da Comissão apreciar relatórios a serem enviados pelos Estados-partes. Tais relatórios, em conformidade com o artigo 62 da Carta, devem conter “as medidas, de ordem legislativa ou outra, tomadas com vistas a efetivar os direitos e as liberdades reconhecidos e garantidos pela presente Carta”.

Por fim, destaca-se a atuação das ONGs, que exercem um papel proeminente nas atividades da Comissão. Elas são responsáveis por fomentar e provocar o sistema africano e, assim, contribuem para o fortalecimento de sua efetividade e para a consolidação do mandato tanto da Comissão, quanto da Corte Africana (PIOVESAN, 2019).

A Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos


A Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, diferentemente da Comissão, não foi estabelecida originalmente pela Carta Africana, mas sim por um Protocolo à Carta, adotado em 1998, e que entrou em vigor em 2004. Ela foi criada para complementar o encargo da Comissão (artigo 2º do Protocolo). Dos 54 Estados-partes da Carta Africana, somente trinta Estados ratificaram o Protocolo, são eles: África do Sul, Argélia, Benin, Burkina Faso, Burundi, Chade, Comores, Congo, Cote d’Ivoire, Gabão, Gâmbia, Gana, Quénia, Lesoto, Líbia, Malawi, Mali, Mauritânia, Maurícias, Moçambique, Nigéria, Níger, Ruanda, República Árabe Saharaui, Senegal, Tanzânia, Togo, Tunísia, Uganda e República dos Camarões.

A Corte consiste em 11 juízes nacionais dos Estados membros da União Africana, sendo que dois juízes não podem ser nacionais de um mesmo Estado, eleitos à título individual, dentre os juristas da mais alta reputação moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos e dos povos (artigo 11 do Protocolo). Os juízes são eleitos pela Assembleia dos Estados da União Africana, a partir de uma lista de candidatos proposta pelos Estados (máximo de 3 candidatos, dos quais dois devem ser nacionais do Estado propositor), por meio de votação secreta. Uma vez eleitos, os mandatos dos juízes duram um período de seis anos, cabendo uma única reeleição. O mandato de quatro dos juízes eleitos na primeira eleição deve expirar ao final de dois anos, e o de quatro outros juízes deve expirar com quatro anos (artigos 13 a 15 do Protocolo).

Ressalta-se que, em relação à composição da Corte, há previsão expressa no protocolo (artigo 14, § 2º e 3º) acerca da observância de representação das principais regiões da África e de suas principais tradições, bem como de adequada representação de gênero.

No que diz respeito à competência da Corte, está se dá da mesma forma que as Cortes dos outros sistemas, por meio das competências consultiva e contenciosa.

A competência consultiva da Corte compreende à possibilidade de emitir opiniões consultivas a respeito da interpretação e aplicação da Carta, ao Protocolo, ou a qualquer outro instrumento de direitos humanos. Tal competência se dá por solicitação de um Estado membro da União Africana, pela União Africana ou qualquer um de seus órgãos, ou qualquer organização africana reconhecida pela União Africana (artigo 4º do Protocolo).

A competência contenciosa, por outro lado, corresponde à capacidade de a Corte apreciar casos submetidos pela Comissão, por um Estado-parte, por organizações intragovernamentais africanas. Ainda, é possível que indivíduos e ONGs submetam casos diretamente à Corte, se houver declaração expressa do Estado, conforme posto pelo artigo 34, § 6º do Protocolo (artigo 5º do Protocolo).

Dos 30 Estados Partes no Protocolo, apenas oito (8), ou seja: Benim, Burquina Faso, Costa do Marfim, Gana, Malawi, Mali e Tanzânia depositaram a declaração a aceitar a competência do Tribunal para julgar casos apresentados por pessoas singulares e por organizações não governamentais (ONGs). Durante o período em análise, somente a República do Benim depositou a Declaração, em 8 de fevereiro de 2016. No entanto, a República do Ruanda, país que depositou a Declaração em 6 de fevereiro de 2013, decidiu retirá-la em 29 de fevereiro de 2016[3].

No exercício da competência contenciosa, a Corte buscará uma solução amistosa ao caso (artigo 9º do Protocolo). Se não for possível esta solução, a Corte poderá receber evidências orais ou escritas, incluindo o testemunho de peritos e deve tomar uma decisão com base nessas evidências (artigo 26 do Protocolo). Ao definir que houve violação de direitos humanos ou dos povos, a Corte deve ordenar meios adequados para saná-la, incluindo o pagamento de justa compensação ou reparação. Ainda, pode adotar medidas provisórias se entender necessárias, em casos de extrema gravidade ou urgência, ou para evitar dano irreparável (artigo 27 do Protocolo).

A decisão da Corte é vinculativa aos Estados-partes em litígio, os quais são obrigados a garantir a execução da decisão. O Conselho de Ministros tem a competência de monitorar a execução das recomendações da Corte (artigo 29, § 2º do Protocolo) e, casos de não aplicação de decisões por parte de um Estado podem ser levados ao conhecimento da Assembleia Geral em relatório anual encaminhado pela Corte (artigo 30 do Protocolo).

Como na Comissão Africana, é importante ressaltar a importância das ONGs para a afirmação da credibilidade da Corte, vez que elas contribuem para o monitoramento da implementação das decisões da Corte Africana, para a publicidade das decisões no âmbito dos Estados, e para a utilização dos precedentes judiciais no âmbito interno (PIOVESAN, 2019).

Contudo, da mesma forma que o sistema interamericano, o sistema africano também sofre com problemas, que comportam desafios à consolidação de sua credibilidade. O primeiro deles relaciona-se com o baixo número de ratificações ao Protocolo, e o ainda mais baixo número de declarações depositadas em relação à capacidade postulatória de indivíduos e ONGs, como disposto no artigo 34, § 6º do dispositivo. Outro desafio reside na falta de cumprimento das decisões da Corte, por exemplo, “a Líbia continua a recusar cumprir os Despachos de Medidas Provisórias emitidos pelo Tribunal relativamente ao caso intentado contra si”. Ainda, também constitui um empasse ao bom funcionamento da Corte a “insuficiência de recursos humanos e financeiros”[4].

[1] SERAC CESR v. Nigeria [2] A Guide to the African Human Rights System, 2016, p. 12. [3] Relatório de Actividades do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos (2016). [4] Relatório de Actividades do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos (2016), p. 21-22.

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