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Litigância climática e direitos humanos: o caso “Verein Klimaseniorinnen Schweiz and Others v. Switzerland” do Tribunal Europeu de Direitos Humanos

Foto do escritor: Jéssica Scopel Signorini Jéssica Scopel Signorini

O direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado não se manifesta tão somente na proteção da fauna e da flora, mas também na garantia da estabilidade climática, a qual constitui-se como um direito humano. Atentos aos deveres internacionalmente assumidos, os Estados formulam políticas e ações para assegurar a efetividade desse direito, incumbindo-lhe as mais diversas medidas necessárias para fins de controle, proteção, restauração e preservação do meio ambiente. 


Quando o Estado falha no dever de atuar no combate aos temerosos efeitos do aquecimento global, o fenômeno da litigância climática tem se mostrado um mecanismo cada vez mais utilizado pela sociedade para responsabilização estatal perante cortes regionais. Neste cenário, uma ação envolvendo um grupo de senhoras idosas e a Suíça junto ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) foi o palco para uma discussão inédita, mas não mais incomum, sobre o uso da litigância para proteção dos direitos humanos em um contexto de emergência climática.


Emergência climática: palavra do ano, problema do século


Em 2019, o Dicionário Oxford declarou que "emergência climática" era a palavra do ano. Definida como “uma situação em que uma ação urgente é necessária para reduzir ou interromper as mudanças climáticas e evitar danos ambientais potencialmente irreversíveis resultantes delas” (tradução nossa), a expressão refletiu à época não somente a superação em pesquisas de diversas outras emergências, mas a nova consciência de uma geração acerca da efemeridade e do imediatismo das questões ambientais em nosso tempo. 


Se o termo foi conhecidamente utilizado pela primeira vez tão somente na década de 1980, hoje já é uma expressão comum e adaptada ao cotidiano para descrever diversas localidades mundiais nas quais seus governantes já declararam, ao menos uma vez, estado de “emergência climática". Isto porque os efeitos provavelmente decorrentes do aquecimento global “já afetam muitos extremos climáticos em todas as regiões do globo, percebendo mudanças nos padrões de ondas de calor e de frio, precipitação intensa, secas e ciclones tropicais” (JUNIOR, 2024, p. 139).


No presente, não mais se discutem tão somente os desastres ambientais regularmente noticiados, mas uma devastação massiva a ponto de inclusive tornar inviável e incerta a existência de vida futura no planeta, para estas e outras gerações. Conforme Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) sobre o Aquecimento Global de 1,5°C, o descontrole das atividades humanas poluidoras desencadeou mudanças no clima do planeta em parte já irreversíveis, de modo que os impactos destes efeitos na vida de todas as espécies do planeta são mais severos e extensos do que o previsto até então, tornando cada vez mais frequentes eventos ambientais desastrosos. Na era da emergência, cada vez mais medidas de urgência têm sido tomadas diante do prazo já vencido para contornar as mudanças climáticas. 


Estabilidade climática e direitos humanos


A intersecção hoje existente entre direitos humanos e emergência climática decorre do reconhecimento da necessidade básica e fundamental à uma estabilidade climática. Atento a estes e outros episódios, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas contemplou que o desenvolvimento sustentável e a proteção do meio ambiente contribuem e promovem não somente o bem-estar humano, mas também o gozo de diversos direitos humanos pelas presentes e futuras gerações, tais quais o direito à vida, à alimentação adequada, à habitação, à água potável e ao saneamento básico, dentre outros. Assim, executando o papel vanguardista que lhe compete no internacionalmente, mas visualizando principalmente convidar a Assembleia Geral a melhor debater o assunto, o órgão reconheceu pela primeira vez, em 08 de setembro de 2021, que o acesso a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano. 


Pelo conteúdo da Resolução 48/13, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas observou que tal direito relaciona-se a outros em conformidade com o Direito Internacional. Logo, encorajou não somente os Estados, mas organizações, programas internacionais, empresas, instituições nacionais e a sociedade civil a de fato implementar o direito ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável, compartilhando boas práticas no cumprimento das obrigações de direitos humanos a ele relacionadas e adotando melhores políticas nesse sentido.


Sob o escopo da proteção do meio ambiente apontam-se os mais diversos objetos que por ela são abarcados, tal qual a fauna e a flora. Todavia, a manutenção de um clima estável é também fator de proteção indispensável a garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Períodos de calor intenso ocorrem dentro dos padrões climáticos naturais, mas globalmente eles estão se tornando mais frequentes, mais intensos e duradouros devido ao aquecimento global.


A subtração da palavra clima de um contexto abrangente como o do meio ambiente tem lhe garantido “o coroamento de status qualificado e maior visibilidade jurídica à proteção climática, não se ‘perdendo’ dentro do conceito amplo e genérico do meio ambiente” (SARLET; WEDY; FENSTERSEIFER, 2023, p. 144). A dimensão desta distinção é vital e destaca a atenção dada à temática, uma vez que “a crise climática representa um dos maiores desafios em termos civilizatórios, tanto em escala global quanto nacional (regional e local), para a proteção e promoção dos direitos fundamentais” (SARLET; WEDY; FENSTERSEIFER, 2023, p. 148).


Montanhas, chocolate e aquecimento global?


Inserida no continente que mais aquece no planeta, a Suíça não é mais descrita unicamente pelas suas belas montanhas e chocolates finos, mas sim como um dos países que mais sofre com os efeitos do aquecimento global. As ondas de calor que com frequência assolam o velho continente assustam os residentes da Europa, revelando inclusive restos humanos e destroços de um avião há muito tempo soterrados pelas geleiras milenares. O motivo: estima-se que, tão somente em 2022, os glaciares suíços perderam 6% do seu volume restante naquele ano, quando 2% já era uma estimativa assombrosa.


Líder no mercado de carbono, a Suíça investe em compensar, no exterior, suas emissões de CO2 para atender aos compromissos assumidos com o Acordo de Paris. Por outro lado, internamente é reconhecidamente falha no seu dever de atuação, de forma que a ineficiência de suas políticas públicas de mitigação das mudanças climáticas já foi inclusive debatida junto ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, acompanhando as perspectivas do fenômeno da litigância climática  com o caso “Verein Klimaseniorinnen Schweiz and Others v. Switzerland.”


A Associação Suíça de Mulheres Idosas pelo Clima


O Tribunal Europeu de Direitos Humanos foi permanentemente instituído a fim de assegurar o respeito aos compromissos resultantes da Convenção Europeia de Direitos Humanos e de seus respectivos Protocolos. Qualquer Estado-parte pode submeter ao TEDH pedido de análise da violação de disposição da Convenção e dos seus Protocolos que creia poder ser imputada a outro Estado-parte. Ademais, nos termos do art. 34, o Tribunal pode receber também petições de qualquer pessoa singular, organização não governamental ou grupo de particulares que se considere vítima de violação por qualquer Estado-parte dos direitos reconhecidos na Convenção ou nos seus Protocolos.


No caso em apreço, a KlimaSeniorinnen Schweiz ("Associação Suíça de Mulheres Idosas pelo Clima", em português) é uma entidade sem fins lucrativos constituída para promover e implementar uma proteção climática eficaz em nome de seus membros, quais sejam mulheres com mais de 64 anos que vivem na Suíça. Empenhada em reduzir as emissões de gases de efeito estufa no país, além de seus efeitos no aquecimento global, sua atividade em prol de uma proteção climática eficaz é considerada do interesse também do público em geral e das gerações futuras. Para tanto, a Associação persegue seu objetivo através da prestação de informações, incluindo atividades educativas, e da tomada de medidas judiciais que sejam do interesse dos seus membros no que diz respeito aos efeitos das mudanças climáticas. 


Movida por quatro mulheres (Ruth Schaub, Marie-Eve Volkoff Perchon, Bruna Giovanna Olimpia Molinari e Marie Gabrielle Thérèse Budry) e a Associação da qual fazem parte, a ação em questão foi ajuizada em 2015, quando a Suíça teve então o mês de dezembro mais quente em 150 anos. Em suas alegações, as litigantes defenderam que as fortes ondas de calor decorrentes do aquecimento global que assolavam o país afetavam em especial sua saúde, seja pela idade, seja pelo gênero. Em contrapartida, não acreditavam que a Suíça vinha tomando ações adequadas e condizentes com os compromissos internacionais por ela assumidos, tal qual o Acordo de Paris.


O ajuizamento da ação pelas requerentes ocorreu em respeito ao procedimento exigido pelo TEDH. Isto porque a Associação e demais requerentes já haviam buscado em seu próprio Estado a análise dos motivos existentes de forma administrativa pelo período de quatro anos, sem sucesso. As requerentes salientaram que o objetivo do seu pedido era obrigar as autoridades, no interesse de salvaguardar as suas vidas e saúde, a tomar todas as medidas necessárias exigidas pela Constituição suíça e pela Convenção Europeia de Direitos Humanos para evitar o aumento da temperatura global. Salientaram a natureza e a missão da Associação e alegaram que eram membros de um grupo mais vulnerável afetado pelas alterações climáticas - seja pela idade ou gênero. 


A decisão foi proferida em 09 de abril de 2024, mesmo dia em que outros dois casos vinculados à responsabilização estatal de eventos decorrentes do aquecimento global foram julgados: “Duarte Agostinho and Others v. Portugal and 32 Others” e “Carême v. França.” Enquanto o primeiro pedido foi julgado inadmissível, principalmente, pelo não esgotamento dos recursos internos em Portugal, no segundo pedido o Tribunal declarou que seu requerente não se adequava ao estatuto de vítima previsto no art. 34 da Convenção. Logo, a apreciação efetiva do caso “Verein Klimaseniorinnen Schweiz and Others v. Switzerland” “constituiu, portanto, um motivo de alegria não apenas para as requerentes ou o público envolvido, mas também para os estudiosos do Direito” (tradução nossa) (ZATKOVÁ; PAĽUCHOVÁ, 2024, p. 231), sendo “o único dos três casos em que o Tribunal se aprofundou no mérito, rejeitando Duarte e Carême por questões processuais” (tradução nossa) (HOFFMANN, 2024).


Sinteticamente, o Tribunal decidiu que as quatro requerentes por si próprias não se adequavam ao estatuto de vítima previsto no art. 34 da Convenção, razão pela qual seus pedidos foram considerados inadmissíveis. À vista disso, o Tribunal explanou que “a  existência  de  um  nexo  de  causalidade  entre  uma  fonte  identificável  de  dano  e  os  efeitos  nocivos  reais  sobre  grupos  de  indivíduos  é  geralmente  determinável” (tradução nossa) (EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 2024), não sendo este o seu caso. Por outro lado, reconheceu-se o direito postulado pela Associação. 


Manifestando-se como a primeira vez em que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tomou uma decisão favorável aos seus requerentes relacionada às mudanças climáticas, já entende-se que, “até agora, o TEDH desenvolveu uma jurisprudência ambiental bastante extensa” (tradução nossa) (ZATKOVÁ; PAĽUCHOVÁ, 2024, p. 228). Em sua decisão, o Tribunal gradualmente reconheceu a relação existente entre meio ambiente e direitos humanos, assim como os "direitos procedimentais de acesso à informação e tomada de decisões em matéria ambiental" (ALBUQUERQUE; APARICIO; FAGUNDEZ, 2024, p. 87).


A decisão mostrou-se “um marco significativo na proteção ambiental fornecida pelo TEDH como um órgão de direitos humanos, mas também um marco no crescente campo do litígio climático” (tradução nossa) (ZATKOVÁ; PAĽUCHOVÁ, 2024, p. 240). A discussão restante em torno do julgamento “surgiu em relação ao seu potencial de afetar outros casos pendentes sobre mudanças climáticas, particularmente aqueles em que os requerentes alegam uma violação de seus direitos fundamentais” (tradução nossa) (ZATKOVÁ; PAĽUCHOVÁ, 2024, p. 239). Felizmente, “os tribunais são um baluarte essencial contra o populismo e têm a tarefa de interpretar o escopo em evolução dos direitos fundamentais e, então, garantir a proteção desses direitos, mesmo quando sua realização pode parecer onerosa e/ou custosa” (tradução nossa) (HOFFMANN, 2024). Quando os casos de litigância climática têm se mostrado cada vez mais frequentes nos Tribunais, a influência positivamente transmitida pelos debates científicos que os cercam nos trazem a segurança de que, quando fundamentadas pela Ciência, as decisões que dela decorrem não dividem, mas nos unem em um único prol: o bem-estar desta e das futuras gerações. 



NOTA EXPLICATIVA: Esta notícia foi subtraída de um artigo científico mais abrangente produzido para a disciplina de “ESG e Mudanças Climáticas”, ministrada pela Profa. Dra. Alessandra Lehmen no Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade de Caxias do Sul (UCS) em julho de 2024.



REFERÊNCIAS:


ALBUQUERQUE, Letícia; APARICIO, Adriana Biller; FAGUNDEZ, Gabrielle Tabares. Emergência Climática e Direitos Humanos: Análise do caso Verein Klimaseniorinnen Schweiz and Others v. Switzerland. Revista de Direitos Humanos em Perspectiva, v. 10, n. 1, p. 76 - 100, jan/jul. 2024.


BARRETO, Vitória. Degelo de geleiras na Suíça revela restos humanos e avião desaparecido. Veja, 09 ago. 2022. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/degelo-de-geleiras-na-suica-revela-restos-humanos-e-aviao-desaparecido. Acesso em: 10 out. 2024.


BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Relatório Especial do IPCC sobre o Aquecimento Global de 1,5°C. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/relatorio-executivo-08-07-web.pdf. Acesso em: 10 out. 2024. 


EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of Verein Klimaseniorinnen Schweiz and Others V. Switzerland (Application nº 53600/20). Estrasburgo, França: 09 de abril de 2024. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/?i=001-233258. Acesso em: 10 out. 2024.


HOFFMANN, Anna. Five key points from the groundbreaking European Court of Human Rights climate judgment in Verein KlimaSeniorinnen Schweiz v. Switzerland. Environmental Law Review, p. 91 - 98, 2024.


JUNIOR, Paulo Cesar Zangalli. (Des) articulações entre crise climática e riscos urbano ambientais. Revista Brasileira de Climatologia, v. 34, p. 134 - 158, 2024.


SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Climático. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.


ZATKOVÁ, Sandra; PAĽUCHOVÁ, Petra. ECtHR: Verein KlimaSeniorinnen Schweiz and Others v. Switzerland (Application No. 53600/20, 9 April 2024): Insufficient Measures to Combat Climate Change Resulting in Violation of Human Rights. Bratislava Law Review, v. 8, n. 1, p. 227 - 244, 2024.


ZHOU, Naaman. Oxford Dictionaries declares 'climate emergency' the word of 2019. The Guardian, 21 nov. 2019. Disponível em: https://www.theguardian.com/environment/2019/nov/21/oxford-dictionaries-declares-climate-emergency-the-word-of-2019. Acesso em: 10 out. 2024. 


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