Exploramos como comportamentos são analisados a partir de duas perspectivas: o relativismo cultural e a visão universalista. Examinamos como essas abordagens, aparentemente opostas, podem compartilhar uma linguagem de dominância. A análise inclui também a relação entre o intervencionismo e essas óticas, além da criação do conceito de "salvador" versus "mal". Além disso, investigamos como intervenções históricas, sob o pretexto de promover a democracia, muitas vezes serviram para exploração. Por fim, discutimos como lidar com as diferenças para construir um futuro mais justo e desenvolvido para todos.
INTRODUÇÃO
“Você já sabe o suficiente. Eu também. Não é
conhecimento o que nos falta. O que nos falta é a
coragem de olhar para aquilo que sabemos e tirar
conclusões." - Sven Lindqvist
O mundo é complexo porque os seres humanos são complexos. Os relacionamentos são bases históricas da construção de uma sociedade. Segundo Boco e Bulanikian¹ (2010), para além da ideia de contrato social, cuja pretensa natureza artificial e voluntária foi criticada após o século XVIII, a noção básica de Direitos Humanos começa a surgir em conjunto com a inabilidade do sujeito. Estes direitos existem, desde o nascimento, apenas pelo indivíduo ser humano. Deste modo, foi a primeira vez que a linguagem jurídica tomou a ideia de norma universal. Com tal entendimento, buscou-se a necessidade da garantia aos Direitos Humanos, adaptando-se a contextos e especificidades.
Ainda que suas manifestações modernas no Ocidente iniciem-se gradualmente, com a carta magna em 1215, o Habeas Corpus em 1679 e Bill of Rights em 1689, a ideia de que os DH são inerentes a todo e qualquer ser humano, independente de suas especificidades, toma força após a segunda guerra mundial, amparada sobre uma base universalista. Após a guerra, houve um esforço internacional a fim de evitar repetições das violações anteriormente cometidas. Em 1945, diversos países reuniram-se para redigir a Carta das Nações Unidas. Tais representantes criaram a Comissão dos Direitos Humanos para estabelecer normas internacionais de dignidade. Em sequência, em 10 de dezembro de 1948, foi declarada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A URSS e seus aliados ausentaram-se, tal como a África do Sul e a Arábia Saudita. Estes últimos alegaram diferenças culturais e religiosas para se oporem a partes da Declaração.¹( Boco e Bulanikian , 2010)
Segundo Foucault, “por detrás de todo o saber ou conhecimento o que está em jogo é uma luta pelo poder. O poder político não está ausente do saber, pelo contrário, é negociado com ele"(apud BOCO; BULANIKIAN, 2010, p. 2). Nesta concepção, a tentativa de “universalizar” um saber ou conhecimento, mesmo que com diálogos multiculturais e “negociações” de valores, os relativistas pontuam sua crítica.
RELATIVISTAS E UNIVERSALISTAS: HIPOCRISIAS DE AÇÃO
A ideia de que as ações de determinados grupos culturais, só podem ser percebidas e interpretadas a partir da percepção dos próprios é o que, em resumo, traduz a teoria relativista. Essa corrente surge entre finais do século XIX e começo do XX, desenvolvida pelo antropólogo Franz Boas. O contexto em que Boas argumenta e sugere o relativismo é reação à escola positivista de Auguste Comte, por orientação que o progresso científico da história só poderia ser realizado em moldes europeus. Deste modo, diferentes povos eram considerados inferiores na hierarquia evolutiva, que tinha a civilização ocidental como ápice. Os estudos de Franz questionariam essa ideia, e ele desenvolveria um modo de análise baseado na compreensão de que não existe uma cultura “certa” ou “errada”, “superior” ou “inferior”, apenas diferente, rompendo assim, com o etnocentrismo da época.
Em campo político, os Direitos Humanos e seus modos de aplicação são vistos por relativistas como formas limitadas e etnocêntricas, que perpetuam uma colonização cultural sobre ex colónias. Segundo Abu-Lughod (2012), “o relativismo cultural é certamente uma melhora em relação ao etnocentrismo e ao racismo, ao imperialismo cultural e à imperiosidade intrínseca a ele; o problema é que é muito tarde para interferir. As formas de vida que encontramos ao redor do mundo já são produtos de longas histórias de interações”.
Ironicamente, o ponto de crítica de tal corrente é exatamente o que ela se propõe a fazer: A cultura perpetualizada por seus próprios participantes são reflexos das relações de poder, e diga-se, hierarquia de um grupo sobre outro. Portanto, até que ponto uma análise livre de estigmas é possível? Pensemos na Mutilação Genital Feminina (MGF), um procedimento que visa castrar mulheres em regiões erógenas, a fim de que não sintam prazer em relações sexuais. Tal intervenção é utilizada como ritual de passagem da menina para uma mulher adulta em determinados povos africanos e asiáticos, ainda que realizados muita das vezes de formas brutais, sem o material necessário e ambiente insalubre, é um processo comemorado e celebrado.
Para além da dor do procedimento, a falta de condições básicas de higiene em que esse ocorre facilita a transmissão de infecções generalizadas, podendo mesmo levar ao óbito. Se há sobrevivência, em geral e especialmente nos casos de infibulação(remoção do prepúcio, do clitóris, dos lábios menores e maiores), a mulher sofre com dores crônicas para o resto da vida, problemas urinários (Agugua 1982), e dificilmente terá uma vida sexual saudável (Akotionga, Traore, Lakonde & Kone, 2001). (apud MELLO, Gaspar Patricia, 2016). Em uma análise relativista, ainda que agressiva e atroz, a intervenção é relacionada a especificidades culturais e sua comemoração cultural. Segundo Mello (2016), “Deste modo, o relativismo cultural sugere que julgar esta prática do ponto de vista de quem não a vivencia, é um exemplo clássico de colonialismo, comparável à catequização dos índios nas Américas.”
De acordo com Steward (1948), é muito além de simplesmente aceitar as especificidades culturais quando estas claramente violam o ser. Mais uma vez, como Lila Abu Lughod relata, o relativismo é de fato importante para identificar o “diferente” e respeitá-lo. No entanto, precisamos considerar que por trás de toda cultura há relações de poder envolvidas, sejam elas historicamente influenciadas por terceiros ou não. Se tal questão não for questionada, se sempre aceitamos uma cultura como “normal”, estamos nos alinhando com os setores dominantes dessa mesma cultura.
Ao mesmo tempo que há uma necessidade de se pontuar contra a “compreensão total” quase que ilusória por parte dos relativistas, deve-se questionar sobre as condições que foram construídos os documentos pró DH e suas materializações (ações), historicamente e nos dias atuais. Para além do debate de direitos universais, há contexto e interesses que exploram tal. Sob essa ótica, até que ponto o universalismo dos DH é, de fato, universal?
CIVILIZAÇÃO SEM CIVILIDADE
Nkali em Igbo (dialeto do povo Igbo nigeriano) traduz-se como “ser maior que o outro”. Segundo Adichie (2019), tal como as relações de poder e economia são feitas pelo princípio do Nkali , a história também. Quem “é maior que o outro” dita o que narrar, quantas vezes, para quem e sua forma. O poder molda percepções: quem é o 'vilão', o 'mocinho', o 'bem' e o 'mal'. Se começarmos a análise pela pobreza e pela crise humanitária no Afeganistão, em vez de focar apenas nas intervenções e no financiamento a grupos insurgentes, a narrativa pode se revelar completamente diferente. Envolve não apenas a dominação, mas também a tendência de tornar o outro invisível.
Em 2002, enquanto uma série de bombardeios eram feitos pelos EUA sobre o Afeganistão na “Guerra ao Terror”, a ex-primeira dama, Laura Bush, discursava pela liberdade das mulheres afegãs alegando que a “Guerra ao Terrorismo” era também uma guerra em prol dos direitos femininos. Infelizmente, nesta suposta luta por direitos, muitos civis (mulheres incluídas) foram mortos, torturados, e vítimas de tratamentos cruéis por parte de agentes americanos. Uma série de crimes que foram levados ao Tribunal Penal Internacional pela barbaridade e demonstram uma hipocrisia pelo suposto “bem” em derrotar o “mal”. Cabe lembrar, que a ocupação estadunidense no território afegão durou de 2001 a 2021. Mesmo com operações de “peacebuilding” no país ao decorrer dos anos, a retomada de poder do Talibã após a saída dos Estados Unidos em 2021 foi inevitável como resultado de uma série de erros na construção de um Estado democrático(nos moldes ocidentais). (BIEZUS, 2018)
A construção do discurso intervencionista é a mesma utilizada desde os tempos coloniais; tem por fim levar “civilidade” a determinado povo ou território. Ironicamente (com certeza não), a dominação sobre o “mal”, por parte do “bem”, coincide com alcance de interesses próprios, como aumento de riquezas, mão de obras etc, dos dominantes. Ao sobrevir em uma área específica para buscar o “progresso” e universalizar direitos, assumindo sobre o que é “certo” ou “errado”, a terminologia “Orientalismo” defendida por Edward Said é notável. De forma resumida, é a construção de um imaginário sobre o Oriente, construído pelo Ocidente. Em tal, busca-se consolidar estereótipos distorcidos, finalmente construindo uma imagem como “vilão”, servindo a interesses coloniais e hegemônicos. Em uma análise prática, o Ocidente projeta no Oriente tudo aquilo que está em si mesmo, como prerrogativa a dominação.
À ideia de “salvador”, deve-se ater o questionamento sobre salvar de quem e salvar por qual razão. Presumir que determinado indivíduo ou grupo precisa ser socorrido, reduz a história e suas particularidades, criando estereótipos. Como Adichie (2019) argumenta, “o problema com estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos.” É compreender, por exemplo, por que a preocupação de países ocidentais com mulheres orientais e suas liberdades torna-se maior do que o entendimento sobre a história do que levou aquelas mulheres a terem seus direitos impedidos. Tais, não são fatos isolados, são consequências de algo. A história adora “replays”, e grande parte deles são resultados da mesma ideia: Hegemonia. A prática cultural, ideológica, política e territorial que um Estado faz sobre outro território a fim de se consolidar e objetificar o “outro” como inimigo.
IREMOÇÃO DA BANDEIRA ESTADO UNIDENSE COM A RETIRADA DE TROPAS AMERICANAS DO AFEGANISTÃO. NPR, 2021. Disponível em: https://www.npr.org/2021/05/17/997494815/the-u-s-looks-to-support-the-afghan-military-from-over-the-horizon. Acesso em: 28 ago. 2024.
VIOLÊNCIA ACOSTUMADA
O processo de dominação tem como fundamento a prática da violência. Para além da complexidade humana sobre o certo ou errado, o entendimento aqui é como tal prática é acompanhada de fatores como a perda de referenciais éticos, o individualismo, a segregação e o empobrecimento de sociabilidade, a corrupção, o descaso aos princípios de justiça, e, principalmente, as posturas discriminatórias contra grupos e minorias. Ao mesmo tempo, a violência se retroalimenta pela própria violência da cultura, ou seja, elementos que florescem dentro de um contexto social específico. Este torna-se um ciclo vicioso que tem por objetivo a consolidação da dominação de um grupo sobre outro.(PEQUENO, 2018)
O que pode-se chamar de violência acostumada traduz exatamente o que Hannah Arendt traz como “Banalidade do Mal”: a não racionalidade por trás de uma ação prejudicial a terceiros em que se torna naturalizada. O sentimento de patriotismo de um povo é muitas vezes forjado pela narrativa que condecora seu valor, simultaneamente em que alastra pelo extermínio do “outro”. É necessário compreender que para além da intervenção ou a simples ideia multicultural de não intervir, o fundamento de uma sociedade se dá pela luta de poder e, por sequência, perseguições e ameaças: O diferente. Ou seja, ilustrando em exemplos práticos: as perseguições e maus tratos por parte do Talibã com mulheres e minorias, em que o multiculturalismo pode relativizar, é resultado da própria cultura histórica de dominação e hierarquização, neste caso, machista e homofóbica. Mas isso não significa que a justificativa de intervenção, por parte dos universalistas, sobre determinada área seja sinônimo de preocupação com a justiça feminina. Somente intervir, sem riqueza de debate, pode ser analisada, mais uma vez, como a ideia de dominância um sobre outro. E como Gayatri Chakravorty Spivak sarcasticamente colocou: homens brancos salvando mulheres marrons de homens marrons. (apud. Lila, ABU-LUGHOD, 2012)
UM CAMINHO EM COMUM
Para além da violência histórica e sua consolidação, é necessário diferenciar o universalismo hegemônico do multiculturalismo inquestionável, e como mais adiante de ambos, construir uma sociedade justa e integrada. Do primeiro, já foi visto como uma ideia de luta pelos direitos de forma universal muita das vezes é utilizada para interesses hegemônicos. Ademais, ao utilizar o pressuposto de “salvador” do “vilão”, uma população inteira pode ser reduzida unitariamente a um estereótipo, incompleto.
O que está implícito a um pressuposto de universalidade é que todos pensam da mesma forma. Mesmo que seja possível que seres da mesma cultura concordem com mesmos princípios, a condição que indivíduos podem negociar princípios na ausência de cultura pelo simples facto de existir um único raciocínio abstrato é fictícia ¹. Na verdade, apenas em um universo em que de fato todos pensam de forma partilhada que o princípio da universalidade não encontra dificuldade, motivo pelo qual muitos mecanismos de DH continuam controversos. (BOCO; BULANIKIAN, 2010)
No que diz a respeito da não intervenção e extrema aquiescência por parte dos relativistas, é necessário diferenciar o que é compreensão do que cumplicidade com o perverso. Segundo Pequeno(2018), “O relativismo cultural não deve ser confundido com o laxismo moral”, é neste fundamento que o debate multicultural precisa se pontuar. A ética, apesar de relativa, demonstra em grau de importância o que questionar. Como a famosa expressão: “O que vem primeiro, o ovo ou a galinha” demonstra, o que vem primeiro: A vida ou tradições culturais? As tradições só são formadas pois possuem seres para compor. Sem indivíduos não existiriam tradições, sociedade, cultura e até mesmo este debate. A vida é também um valor a ser defendido. “Há ideias que justificam a morte. Há pessoas que nos fazem defender a vida”.(PEQUENO, 2018)
Contraditoriamente, tal como em um olhar relativista sobre a perpetuação de hierarquias como “culturas” a não serem interferidas. Uma consideração exagerada de normas universais escondem mecanismos que podem legitimar comportamentos para preservar as estruturas de poder. Deste modo, nem o relativismo cultural, nem o universalismo escapam à manipulação política.(BOCO; BULANIKIAN, 2010)
Para além da dominação, é o reconhecimento que o diferente existe e deve existir. Não há superioridade de uma ideologia sobre outra. A base do desenvolvimento é exatamente o eterno movimento de oposição, inquietação sobre o já consolidado. Enxergar o outro com a noção de que o desenvolvimento não é unitário, e sim coletivo. Coloquemos a substituição da palavra Nkali em Igbo, para a palavra “Ubuntu”, dos idiomas zulu e xhosa do sul do continente africano: “Eu sou porque nós somos.” A noção de igualdade como um princípio fundamental e condicional para a existência do outro.
As histórias importam. As diferenças que elas traduzem também importam, sejam para usurpar e depreciar, ou desenvolver e humanizar. Podem destruir a dignidade do ser, mas também podem reconstruir e em constante evolução.(ADICHIE, 2019) Não é algo dado, é conquistado, e por isso se chama luta. E esta luta não deve ser de um povo sobre outro, e sim sobre si mesmo. Apesar das relações de poder institucionalizar a violência de forma enraizada na sociedade, isto não significa que a busca por um futuro pacífico a todos, independente de suas especificidades seja impossível. Pelo contrário, a partir das diferenças podemos construir uma base próspera e digna. Pois, não deve ser feito APESAR das diferenças, e sim porque elas existem e nos tornam diferentes.
REFERÊNCIAS:
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ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim Women Need Saving? Cambridge: Harvard University Press, 2015.
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. TED Talks, 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.
AGUGUA, N. E.; EGWUATU, V. E. Female circumcision: management of urinary complications. Journal of Tropical Pediatrics, v. 28, p. 248−252, 1982.
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Adorei! Muito bem construído.
Ótimo texto! Recomendo a leitura.