A segurança internacional, de maneira tradicional, sempre esteve ligada à imagem do Estado, o que significava que por muito tempo, o conceito de segurança era ligada apenas às questões militares e que o Estado era o responsável único por lidar com isso.
Na década de 90, com o fim da Guerra Fria, há a intensificação da globalização, processo este que altera profundamente a ordem internacional e reformulam, de forma decisiva, o conceito de segurança internacional. Somado a isso, as considerações das escolas críticas, como o feminismo, os pós modernos e os construtivistas, contribuíram para uma redefinição do que se entendia por segurança, principalmente ao passarem a questionar quem é o sujeito da segurança, começando a surgir a segurança humana, que observa como sujeito da segurança, o indivíduo.
A agenda WPS (Women, Peace and Security), das Nações Unidas, é considerada o principal guia para questões envolvendo segurança de mulheres e meninas e participação feminina no peacebuilding. A questão dos direitos reprodutivos, envolvendo principalmente a situação do aborto, não aparece de forma direta nas agendas sobre a segurança feminina, mas, pelos altos números de abortos clandestinos que acontecem no mundo todo, assim como o alto número de mortes por esses procedimentos, tem sido considerado cada vez mais uma questão de segurança.
Não existe um único instrumento de direitos humanos dedicado aos direitos reprodutivos, exclusivamente. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde sexual e reprodutiva envolve cinco componentes principais, entre elas eliminar o aborto inseguro e fornecer atenção pós-aborto. Mesmo a CEDAW, de 1979, ou a Resolução 1325, do Conselho de Segurança, que depois culminou na agenda Mulheres, Paz e Segurança, não falam sobre a questão dos direitos reprodutivos, especificamente, há menções ao bem estar e ao impedimento de mortes evitáveis, principalmente as maternas.
Na CEDAW, por exemplo, os artigos 12 e 14 falam sobre como não deve haver discriminação contra a mulher no que concerner a questões de saúde, como acesso a informação e a cuidados médicos seguros, mesmo os concernentes à questão de planejamento familiar, o que alguns doutrinados hoje assumem que pode ser incluída a possibilidade abortiva, por entrar nesse planejamento. A agenda WPS tem quatro pilares, que são a prevenção, a participação, a proteção e alívio e recuperação, os quais, como na Resolução 1325, tratam mais sobre as questões de conflitos e pós-conflitos, mas muitas organizações passaram a entender que, pela alta periculosidade, a questão do aborto entraria para os pilares da prevenção e proteção, dessa agenda.
O aborto, como se sabe, se feito de maneira incorreta, pode levar a sequelas graves, para o resto da vida de uma mulher, ou até a morte. O Guttmacher Institute faz constantes relatórios sobre a situação abortiva e, no relatório de 2020, que 121 milhões de gravidez não desejadas aconteceram a cada ano, de 2015 a 2019, e dessas, 61% terminaram em abortos. O instituto, através de pesquisas, excluindo as grandes populações da China e Indía, confirmou que a taxa de aborto é maior em países cujo acesso ao aborto seguro é mais restrito. Estima-se que, nos países em que há a restrição do aborto, mesmo naqueles, como o Brasil, que permitem para casos específicos, a porcentagem de gravidez acidentais que resultam em aborto cresceu nos últimos 30 anos, de 36%, entre 1990 a 1994, para 50%, de 2015 para 2019.
Quando se observa especificamente a América Latina, em 2014, por exemplo, pelo menos 10% das mortes maternas aconteceram por conta do aborto clandestino. Um relatório de 2018, do mesmo instituto, também analisou que, durante o período de 2010 a 2014, cerca de apenas um em cada quatro procedimentos abortivos, na América Latina, foi feito de maneira segura, isto é, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, e que cerca de 760.000, na região, são tratadas anualmente por complicações de um aborto inseguro, que leva desde infecções até a morte.
Sabe-se que documentos como as Declarações e os Programas e Plataformas de Ação de Conferências Internacionais, são considerados soft law, portanto sem um caráter vinculante como os tratados e convenções de direitos humanos. Eles agem mais como compromissos morais dos Estados signatários, que não implicam uma tradução automática para as legislações domésticas. Elas, porém, geram uma pressão externa por algo que já virou consenso internacional e, apesar da positivação de direitos não ser diretamente ligadas a tradução eficaz em políticas públicas, gera um caminho forte para que esse consenso se traduza dentro das fronteiras nacionais.
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