George Orwell afirmava que “a maneira mais rápida de acabar com uma guerra é perdê-la.” No entanto, enquanto tratados permanecem não assinados ou renúncias não são declaradas, os danos decorrentes de um conflito ultrapassam sua duração, afetando profundamente as gerações subsequentes. Em tempos de guerra, bens que constituem prova material da existência de uma civilização – sejam eles de valor arqueológico, ambiental, histórico, paisagístico ou bibliográfico – frequentemente se tornam alvos prioritários das partes beligerantes.
Considerando a importância desses bens para a identidade e o patrimônio de um povo, é essencial ressaltar que sua preservação é vista como um instrumento fundamental para a reconstrução de comunidades pós-conflito. Destaca-se, portanto, o valor da atuação de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), e das convenções por elas estabelecidas, na proteção de bens culturais em conflitos armados. Essas ações visam resguardar não apenas a dignidade e identidade das vítimas, mas também o valor desses bens para o Direito Internacional, preservando-os como parte integrante da história da humanidade.
Uma bandeira pela paz
A proteção de bens culturais em conflitos armados reporta-se à necessidade de preservar a memória coletiva física de um povo ou comunidade, cuja existência, sem o devido cuidado e preservação, estaria fadada a se perder ao longo do tempo. Nesse sentido, embora essa consideração tenha recebido maior atenção após o fim da Segunda Guerra Mundial, os primeiros movimentos pela proteção de bens culturais nas fontes do Direito Internacional remontam a períodos anteriores a esse evento.
Inicialmente, não obstante uma breve menção à proteção de prédios históricos na ocorrência de ataques armados junto ao anexo da Convenção de Haia de 1907, o Pacto de Roerich representou a oficialização do plano de um pintor, escritor, arqueólogo e filósofo russo de que relíquias inestimáveis fossem protegidas para o acesso de futuras gerações. Idealizado por Nicholas Roerich, o artista se viu na obrigação de reagir ao ser fortemente tocado pela destruição de diversos bens culturais durante a Primeira Guerra Mundial e seus conflitos posteriores. Deste modo, em um movimento vanguardista, propôs na década de 20 a “Bandeira da Paz”. Formada pela junção de três círculos vermelhos dentro de um círculo maior, a bandeira representava a harmonia entre a arte, a ciência e a religião. Ao ser hasteada em monumentos, instituições e escolas em que era ostentada, sua utilização demarcava a ideia de proteção da cultura, seja em tempos de guerra ou de paz.
O movimento idealizado por Roerich alcançou grande impacto e, ao ganhar espaço nos principais centros de debate internacional, culminou em um acordo formal. Assinado em 15 de abril de 1935, o Pacto de Roerich determinava que, visando à promoção da paz e à preservação cultural, além de ressaltar a importância da arte e da cultura para a humanidade, monumentos, museus e locais de relevância cultural deveriam ser respeitados mesmo em tempos de guerra. Embora sua implementação prática tenha sido limitada, a influência do Pacto de Roerich em organizações e tratados subsequentes é amplamente reconhecida. Aproximadamente uma década após a assinatura do pacto, foi fundada a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), evidenciando a continuidade e a relevância dos princípios de preservação cultural defendidos por Roerich.
O movimento idealizado por Roerich tomou tamanha proporção que, ao dominar os centros de debate da comunidade internacional, ganhou concretude e demandou a sua materialização escrita. Assinado em 15 de abril de 1935, o Pacto de Roerich estabeleceu que, visando promover a paz e a preservação cultural, assim como ressaltando a importância da arte e da cultura para a humanidade, monumentos, museus e locais de importância cultural deveriam ser respeitados em tempos de guerra. Embora uma implementação prática tenha sido lamentavelmente limitada, a influência do Pacto de Roerich em organizações e tratados posteriores ainda hoje é reconhecida. Isto porque, cerca de dez anos depois, fundava-se a UNESCO.
Solidariedade intelectual e moral da humanidade
Como reconhecimento por parte dos líderes mundiais de que cultura e educação desempenham papéis fundamentais na prevenção de novos conflitos armados, a UNESCO foi criada sob o princípio de que “uma vez que as guerras se iniciam nas mentes dos homens, é nas mentes dos homens que devem ser construídas as defesas da paz.” Assim, como agência especializada das Nações Unidas, seu propósito é promover a colaboração entre os países por meio do desenvolvimento da educação, ciência e cultura, fortalecendo a justiça, o estado de direito, os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente garantidas, a fim de contribuir para a manutenção da paz e segurança mundial.
Sediada em Paris, na França, a UNESCO tem trabalhado desde a sua fundação nas mais diversas áreas, colaborando no trabalho de fazer avançar o conhecimento e o entendimento mútuos entre os povos, oferecendo impulso renovado à educação popular e disseminação da cultura, mantendo, expandindo e difundindo o conhecimento. Como um fórum importante para a discussão de questões globais relacionadas à educação, ciência e cultura, sua atuação mostra-se essencial no desenvolvimento de tratados internacionais, tais quais a Convenção de Haia de 1954 para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado e a Convenção de 1972 sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural.
Grande importância para todos os povos do mundo
Vinte anos após a assinatura do Pacto de Roerich, a Convenção de Haia de 1954 para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado representa um marco no Direito Internacional no tocante ao combate à fragilidade do patrimônio cultural. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, herdou-se um legado de apreensão quanto aos monumentos, obras de arte e locais históricos já destruídos ou saqueados, mas também com a necessidade de se evitar a repetição de tais eventos.
Adotada em 14 de maio de 1954, esta se manifesta como um pilar para as atividades da UNESCO e de outros organismos internacionais na proteção do patrimônio cultural em todo o mundo. Isto porque, em sua estruturação, definiu de forma conceitual o que são bens culturais, além da responsabilidade dos Estados em protegê-los com a adoção das corretas medidas legislativas e administrativas e da possibilidade de assistência internacional em um espírito de colaboração global.
Para começar, a Convenção de Haia de 1954 para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado estabelece que seus Estados-membros reconhecem os graves danos sofridos pelos bens culturais em decorrência das últimas guerras, principalmente quanto ao aperfeiçoamento das técnicas bélicas e uma maior ameaça de destruição. Convencidos de que a devastação de tal patrimônio afeta toda a humanidade, assim como inspirados em princípios de tratados anteriores, tal qual o Pacto de Roerich, resolveram adotar todas as disposições possíveis para proteger os bens culturais.
Na sequência, define para fins conceituais que são considerados bens culturais, seja qual for a sua origem e o seu proprietário, aqueles móveis ou imóveis - aqui inclusos os edifícios de conservação e exposição, tais quais bibliotecas e museus - que tenham uma grande importância para o patrimônio cultural de um povo, sendo eles monumentos de arquitetura, arte ou história, obras de arte, manuscritos, livros, coleções ou arquivos, cujo valor seja religioso ou secular. Tendo em vista que o imperativo refere-se à salvaguarda e respeito de tais bens, comprometem-se os Estados-membros a protegê-los em qualquer território, não tomando medidas de represália contra eles. Ademais, cita-se que, em procedimento semelhante ao do Pacto de Roerich, a Convenção de Haia de 1954 para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado adotou um emblema para fins de identificação de locais sob proteção e suas características.
Anos mais tarde, a Convenção de 1972 sobre a Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural diferencia-se da anterior ao incluir como patrimônio mundial, além dos bens culturais, os bens naturais, tais quais parques e ecossistemas, mas também direcionar-se para além dos conflitos armados. Nesse sentido, sua maior motivação foi a construção de uma importante represa no Egito na década de 60, a qual ameaçava a preservação de sítios arqueológicos e monumentos localizados às margens do rio Nilo, como os Templos de Abu Simbel. Em resposta à necessidade de contorno da situação, a UNESCO mobilizou países e organizações internacionais em uma campanha de preservação, tornando possível desmontar e realocar os templos em uma nova localização.
Sintetiza-se que, do seu modo complementar, ambas contribuem para a preservação do patrimônio cultural, mas abordando questões distintas relacionadas à proteção e conservação. Neste cenário, a UNESCO desempenha papel fundamental na promoção e implementação das Convenções, seja como uma impulsionadora da iniciativa de sua criação, organizadora de conferências, colaboradora na redação do texto ou consultora técnica na formulação de suas diretrizes. Atualmente, registra-se que a agência também trabalha no monitoramento da implementação das Convenções pelos Estados-membros, além de desenvolver programas educacionais e de capacitação para ajudá-los a melhor entender suas disposições.
A morte da cidade?
Os limites são frequentemente ultrapassados na busca por atingir um adversário. Em maio de 1999, após a tomada da cidade de Bamiyan, no Afeganistão, o Talibã ordenou que prisioneiros, moradores da própria região, instalassem explosivos em algumas das estátuas históricas ali localizadas. Conhecidas como os Budas de Bamiyan, essas esculturas, com 38 e 55 metros de altura, haviam sido esculpidas no século VI, representando uma rica herança cultural e espiritual. Tal ação remonta, possivelmente, à interpretação fundamentalista do Talibã sobre a lei islâmica, que proíbe a idolatria e a representação de ícones, como figuras humanas ou divindades.
Assim como outros bens culturais, a reparação do dano causado aos Budas de Bamiyan é impossível, sendo a quantificação desta perda equiparável ao seu valor: atemporal. Não obstante, assim como a Convenção de Haia de 1954 para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado previu em seu preâmbulo o aperfeiçoamento das técnicas de guerra, reconhece-se hoje também que os recursos de ataque a nações ou povos oponentes não mais se limitam a bens culturais, mas cidades de valor histórico como um todo, tal qual Bamiyan. Este movimento, que não mais se observa como inédito, fomentou inclusive a alcunha de um termo: urbicídio.
O urbicídio pode ser entendido como a morte da cidade. Utilizado pela primeira vez na novela de ficção científica do autor britânico Michael Moorcock “Elric: Dead God’s Homecoming”, foi o termo difundido em outros contextos para denominar experiências de destruição do patrimônio cultural, marginalização de comunidades e gentrificação. Não obstante, a magnitude de sua utilização tomou nova forma após o cerco de Sarajevo na década de 90, quando o ataque a uma cidade não mais se reduzia à sua destruição física, mas também identitária.
Seja no Afeganistão ou na Bósnia e Herzegovina, o ataque às cidades tem sido um instrumento de apagão cultural já sob a atenção da comunidade internacional, mas principalmente da UNESCO. Isto porque a agência já discutiu em 2003, por ocasião da 13ª Assembleia Geral dos Estados-partes na Convenção do Patrimônio Mundial, pela adoção de um crime contra o patrimônio comum da humanidade como forma de combater a destruição planejada de relíquias comuns ao Homem, condenando os responsáveis pelo planejamento e execução de tais agressões junto ao Tribunal Penal Internacional.
Por ora, aguardam-se novas deliberações sobre o prosseguimento desta ideia. Nesse sentido, questiona-se uma interpretação, ainda que bastante improvável, através dos casos já julgados pelo Tribunal Penal Internacional, tais quais nas categorias de crimes contra a humanidade ou crimes de guerra, ou a inclusão de um novo crime, o que implicaria em uma emenda ao Estatuto de Roma. Ademais, não podemos olvidar a necessidade de uma clara definição, o reconhecimento por parte das nações e o apoio da comunidade internacional. Invariavelmente, eventuais discussões não obstam que mais Estados sejam signatários dos tratados já existentes que protegem os bens culturais no caso de conflitos armados, isto pelo combate não apenas da difusão do terror, mas de ataques à identidade de adversários que transcendem indivíduos.
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